sábado, 26 de janeiro de 2013

Sinais trocados



  "Eram dois. Dois hífens que caminhavam sobre a calçada ao pôr-do-sol. Discutiam saberes, Discutiam traços de histórias recontadas e riam sobre a mesmice do dia comum, mas não para eles. Encontraram o que procuravam. Era um ponto- essencial- não final, mas inicial. Um ponto de ônibus.
  Agora eram passageiros em busca de assentos (acentos) para se colocarem. Tinha apenas um disponível, mas não era para eles, e sim do (de) ônibus. Era um acento diferente, um daqueles para deficientes, são mais altos, bilaterais, dão uma tonicidade fechada; totalmente circunflexo aos outros acentos, que eram feios, retos e abertos- agudos. Embelezavam o local. Embelezavam as pessoas-palavras.
   Sentaram-se. Não sabiam para onde iam. Apenas conversavam, parafraseavam e a cada ponto em que paravam, analisavam metodicamente cada nova pessoa que entrava. Pessoas? Não tinham acento. Ficavam de pé. Mas às vezes entravam aquelas outras, que acabavam conseguindo algum lugar. Eram Fátimas, Emílias, Vitórias, Flávios, Andrés, Josés, Cláudios. Ah! Esses precisam de acento, não? Não precisava ser igual ao deles, podia ser agudo, melhor, devia ser agudo! Pensavam, cansados de tanto pensar.
   Logo esqueceram e se perderam na paisagem que estava ao seu lado, para além da janela. Começaram a imaginar como seria se estivessem lá fora e quiseram estar lá. Descer? Melhor não. Não sabiam onde estavam e já anoitecia, melhor que ficassem seguros.
Imaginaram-se naqueles tantos outros momentos: no algodão-doce do menino que contente andava de mãos dadas com a mãe sorrindo por que o pedaço que tirou era grande demais para sua pequena boca, ou naquela água-morna, a poça d’água no chão deixada pela chuva que caía logo cedo e que provavelmente desapareceria dali, evaporaria e apareceria em outro lugar, com outro tamanho, outra temperatura; ou como  seria se estivessem presos dentro do sapato daquela menina que dança no salão, em sua meia-calça rosada, sentindo-a, percebendo  a música lhe arrepiar os poros, o suor tomar todo o seu corpo que se movimenta arduamente... Não puderam ver mais, ela tinha ficado pra trás. Sua meia-calça, o algodão- doce, a água-morna ficara pra trás, tudo não passou de mera palavra composta passada pelo caminho percorrido por eles.
    Olhares se voltaram para uma passageira que subia. Exigia um acento, mas o ônibus não tinha. Não podia ser reto, muito menos circunflexo. Fonético, específico, fácil de usar, mas não de encontrar. Coitada, não tinha. Mas não aparentava tristeza.
   -Boa noite. Posso me sentar aqui?
   -Boa noite senhora, qual sua graça?
   -Redação, muito prazer.
   -Este acento não lhe cabe, nem nossa pontuação. Pedimos desculpas.
   -Por que não? Quem são vocês!?
   - Bem senhora..
   -  Ah...já sei... Hífens! Acertei?! Não entendo como podem ser sempre retos, estáticos, deslocados! Sempre com dificuldades em se colocar... Devem estar aqui, provavelmente com medo de descer. Por isso que as palavras lhe fogem e são tão excluídos e não aceitos! Por que não tentam viver sem tantas determinações e limitações? Libertem-se dessa retidão!
   - O que quer de nós?!
   - Nada! Preciso de nasalização. Sinal diacrítico! Este seu “acento” não serve pra mim! Vocês num passam de mero sinal indicativo. Se pelo menos deixassem...
   -O quê?
   - O ônibus parou escutaram? Não posso me limitar a um til, que aqui não vi, buscarei outros momentos, outros horizontes, outras palavras. Afinal sou uma redação, preciso disto. Espero que façam o mesmo. Estou descendo.
   - Vamos descer?
   -Onde estamos? Já é noite! Vamos ficar aqui?
   - E para onde iremos?!
   - Vamos deixar de tantos pontos de ônibus. Tantas vírgulas impensadas. Buscar coisas novas, experimentar coisas novas. Não somos insignificantes. Só nos limitamos! Talvez nossos pensamentos sejam muito pequenos para a grandeza de nossas mentes! Ela estava certa.
   - E o que faremos?
   -Não sei. Só penso. É bom pensar. “Por que devemos ser traço, quando podemos ser uma curva e percorrer tantos caminhos?”
   -E fecha aspas.”

   E não pensaram mais. Foram. “Curvaram-se"."

(Milly Almeida (25/01/2012)